ACUSAÇÕES CONTRA O ESPÍRITO RELIGIOSO
Um estudo no capítulo 23 do evangelho
de Mateus
Artigo/Teologia.
De todas as
minhas leituras da Escritura em todos os últimos vinte anos, um dos textos mais
impressionantes e surpreendentes para mim sempre foi Mateus 23. A agudez e a
gravidade com a qual Jesus faz acusações e emite sentenças contra o espírito
religioso dos líderes de sua nação são extraordinárias.
Ali estava a
nata, a elite espiritual da nação de Israel, que deveria ensinar e guiar o povo
escolhido para uma compreensão mais profunda da vida e da vontade de Deus, mas
ao contrário disso, aqueles guias, não somente estavam cegos para a sua missão,
assim como deixavam o povo cego acerca das coisas e da vontade do Senhor Deus
YaHWeH.
Em minha
percepção, Jesus, de três maneiras, lhes lança em rosto os seus pecados: pela
descrição de seus atos religiosos, pelas sentenças divinas contra eles e por um
lamento profético sobre a capital da nação. Vamos tratar o texto por estas três
vias e tentar compreender a profundidade e a seriedade do que foi dito àqueles
homens.
Atos religiosos vazios
de Deus, mas cheios de si
O Senhor
inicia descrevendo como eles se comportavam no meio do povo, a quem estes
homens deveriam ensinar e guiar. Basicamente, os seus atos religiosos eram
cheios de pompa, de aparente espiritualidade, que demonstrava parecer estar
mais próximos de Deus e de terem mais santidade na vida, todavia, eram
simplesmente atos vazios da presença de Deus e cheios de ego inflado pela
posição que ocupavam. Jesus lhes diz que:
- · Eles eram líderes legítimos e que não eram usurpadores do cargo que ocupavam, mas falhavam em serem exemplos para os que lideravam (v. 2-4).
- · Tudo o que faziam diariamente, tinha o objetivo de serem destaques entre as pessoas, em outras palavras, nos nossos dias, diríamos que eram celebridades que usavam bem o marketing pessoal. O que de fato lhes importava era em como eram vistos pelas pessoas, somente a aparência exterior (v. 5-7).
- · Também gostavam dos títulos. Desejavam serem reconhecidos pelos títulos de respeito que acreditam que as pessoas deveriam lhes chamar, como “pai”, “mestre” e “guia”. Não que não o eram, mas apenas os títulos importavam, não as pessoas a quem deviam servir. Quando os títulos se tornam mais importantes para alguém, o seu relacionamento com os outros é frio e distante (v. 8-10).
- · Por fim, Jesus lhes diz que suas ações não eram motivadas pelo princípio da humildade, mas pela autoexaltação e isso não lhes era favorável diante de Deus (v. 11-12).
Os “Ais” de Jesus
Esta expressão
é comumente usada nas Escrituras para se referir a uma sentença de Deus sobre
alguém, sobre um governo ou sobre uma nação. Vemos isso por muitas profecias
dos profetas na Antiga Aliança, como Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Amós,
Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias e Zacarias. Jesus a usou em outra
oportunidade para sentenciar cidades em Mateus 11.20-24 (o mesmo que em Lucas
10.1-16), porém, nas outras vezes, referiu-se aos líderes da nação.
Um “ai” é uma
sentença de juízo dada por Deus e seu cumprimento é certo e determinado. Este
tipo de juízo profético, tanto baseia-se no julgamento que Deus fez e o
profere, como na vontade de Deus que determina que sua sentença ocorrerá em
tempo estabelecido por Ele. O Senhor lhes lança oito[1] “ais”.
Um (v.13).
Eles são julgados porque por suas atitudes erradas não permitem que o povo veja,
tampouco entre no reino dos céus. As pessoas que deveriam conduzir o povo para uma
vida plena na presença de Deus, por causa de suas ações religiosas exteriores,
nem eles mesmos a viviam, e também não permitiam que o povo vivesse. São réus
condenados porque interferiram na conexão e no acesso do povo ao seu Deus.
Dois (v.14).
Eles foram julgados por não compreender a noção de solidariedade que deveriam
ter com os mais necessitados, neste caso, com as viúvas, que não tinham naquela
época, nenhuma forma de provisão governamental, a não ser sua própria família
que lhes provinha o necessário. Se lhes faltasse alguém, certamente teriam
vidas muito difíceis, além da própria viuvez. Aqueles homens frequentavam suas
casas com ares de espiritualidade para fazer orações por elas, mas se
aproveitavam de sua fragilidade para lhes consumir os recursos que possuíam.
Não se preocupavam com elas, mas com o que ainda lhes restava em casa. Como não
seriam condenados?
Três (v.15).
Receberam sentença de juízo pelo modelo de proselitismo que faziam, ou seja, se
eram homens com este tipo de comportamento e motivações interiores, quando
convertiam outros ao seu judaísmo, faziam pessoas iguais a eles. “Duas vezes”,
porque os novos discípulos deles aprendiam a carga de ensino com essas falhas
de caráter e apenas reproduziam a mesma maneira de agir. “Ai” neles!
Quatro
(v.16-22). Foram condenados por Jesus porque viam com a ótica errada. Eles
criam que as coisas como o ouro que cobria os utensílios do santuário e as
ofertas entregues no altar eram mais significativas que o próprio santuário e o
altar que estavam ali. Isto significa que aqueles homens não se relacionavam
com o objetivo maior dos próprios atos exigidos por Deus, mas eram tão naturais
e carnais, que somente viam o que estavam diante de seus olhos. Não percebiam
que o santuário e o altar deveriam levá-los à realidade última daquele que
habita no santuário (Deus), da santidade e do trono do Altíssimo. Por isso
foram julgados.
Cinco
(v.23-24). Eles receberam juízo porque eram parciais nas suas ações. Eram
dizimistas íntegros, mas falhavam na compreensão que suas próprias vidas deveriam
ser ofertas de Deus ao povo, devendo tratá-los com justiça e misericórdia e ser
exemplos de pessoas de fé para todos. Por não agirem assim no dia a dia, sua
parcialidade era tão gritante que foi comparada com alguém que consegue coar um
mosquito (ser detalhista ao extremo) e engolir um camelo (fazer vistas grossas
em outras situações). Quando se é parcial neste nível, atraem-se os “ais” de
Deus.
Seis (v.25-26).
Aqueles homens foram condenados porque sua realidade exterior não era a mesma
que a interior. O desejo de Deus é que sejamos pessoas inteiras e
transparentes, ou seja, que o que os outros vejam exteriormente em ações, seja
compatível com aquilo que há dentro de nós. Eles tinham aparência exterior de
pessoas espirituais e santas, mas o Senhor os conhecia por dentro e sabia que
suas mentes eram corruptas. Jesus lhes diz que deveriam mudar suas atitudes
interiores, porém o juízo já havia sido lançado.
Sete (v.27-28).
Este juízo é um aprofundamento do anterior, pois o Senhor lhes diz que eles têm
a aparência de homens justos e bons, mas que a realidade que subjaz em seus
corações são máscaras sociais e maldade profunda. Isto é sério, pois significa
que eles passaram tanto tempo representando esses papéis, que era natural para
si os seus comportamentos e que sua consciência havia se perdido no processo.
Oito
(v.29-36). Esta é a última e a mais longa sentença de Jesus contra os
religiosos profissionais de sua época, mas o juízo é bem fácil de entender.
Eles diziam ao povo que se estivessem vivos na época em que os profetas foram
mortos por seus antepassados, jamais agiriam daquela forma, mas Jesus lhes
assevera que eles estão mentindo a si mesmos, pois não poderiam agir de outra
maneira, porque, em sua genética, eram naturalmente reprodutores dos pecados de
seus pais. Filhote de cobra é cobra porque esta é sua natureza e não pode ser
mudada. Por isto Deus deixou que se acumulasse todo o sangue dos profetas até
aquela geração presente para que lançasse o juízo definitivo sobre a situação.
Em uma geração à frente, tudo estaria terminantemente eliminado, o que
aconteceu no ano 70. Após quarenta anos (uma geração) a partir deste juízo, com
a destruição do Templo e a expulsão dos judeus de sua terra, este “ai” se
cumpriu.
O Senhor Jesus
usa duas palavras constantemente para se referir ao caráter daqueles homens que
estavam corrompidos pelo espírito religioso equivocado e pecaminoso de seu
tempo: “hipócritas” e “guias cegos”. Os hipócritas se utilizam de máscaras
sociais e públicas no exercício de suas atividades diárias, para que as pessoas
não possam discernir suas reais intenções, nem seus corações frios e malignos.
Os guias cegos são aqueles que não sabem para onde estão indo, tampouco
conhecem o caminho por onde estão levando os seus liderados. Gente assim é um
perigo para a sociedade, para a nação e para e fé. Mas o julgamento ainda não
acabou.
O lamento profético
O lamento era
um recurso profético de proclamação das sentenças de Deus comumente usadas
pelos profetas do Antigo Testamento. Jesus se utiliza desta tradição para
encerrar seu discurso no templo naquele dia. Dizemos recurso de proclamação e
não de escrita, porque acreditamos que os profetas receberam primeiro a
revelação, a proclamaram em muitos casos, e depois é que registraram para a
posteridade. Não aceitamos, em hipótese alguma, a falsa ideia de alguns
críticos que imaginam que o texto é posterior ao acontecimento[2].
O lamento
profético é uma maneira de descrever o desapontamento de Deus pela situação,
pelos pecados do povo, e neste caso específico, pela capital de Jerusalém, onde
os religiosos profissionais moravam e viviam sua religião contaminada por um
espírito errôneo. A cidade também era culpada pelos atos do passado, pelo
sangue dos profetas derramado e por estar habitada por uma geração corrompida
pelo espírito religioso que afastava o povo do seu Deus.
Como Jesus já
havia feito menção da sentença sobre a geração de líderes e de seu futuro nas
próximas décadas, agora ele sentencia a própria cidade e declara que ela ficará
deserta, ou seja, o templo, a vida e a religião não seriam mais vividas ali
concretamente até que, num tempo futuro distante, os vivos dirão: “Bendito o
que vem em nome do Senhor”. Em outras palavras, a verdadeira religião e fé, a
plenitude da vida pretendida por Deus ao seu povo de Israel e a liderança
saudável do Messias tão esperada, só se tornará realidade para eles quando num
futuro determinado, eles reconhecerem a messianidade de Jesus de Nazaré.
Podemos
aprender muito como líderes, oficiais ou não da igreja de Cristo, sobre o
comportamento e as atitudes esperadas por Deus daqueles sobre os quais Ele
escolhe para serem guias e apascentadores de seu povo. Tomemos estes exemplos e
não nos esqueçamos da admoestação paulina sobre nossa atual situação como
“enxertados” na videira da qual estes homens foram cortados, a fim de que não
recebamos as mesmas acusações:
19 Dirás, pois: Alguns ramos
foram quebrados, para que eu fosse enxertado.
20 Bem! Pela sua incredulidade,
foram quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme. Não te ensoberbeças,
mas teme.
21 Porque, se Deus não poupou os
ramos naturais, também não te poupará.
22 Considerai, pois, a bondade e
a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a
bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado.
Aos romanos, capítulo
11.
Carlos Carvalho, Bp.
Pr. Sênior da Comunidade Batista
Bíblica
[1] O verso 14 é um texto
entre colchetes ou parênteses porque é duvidoso e não aparece em certos
manuscritos antigos. Isso indica que possivelmente foi um acréscimo feito por
um copista na tentativa de explicar melhor a passagem segundo sua perspectiva.
Sendo isso aceito, então os “ais” são sete, o que corresponde mais precisamente
com a tradição da numerologia judaica.
[2]
Estes críticos, em minha perspectiva, não são sequer dignos de serem
mencionados.
Comentários
Postar um comentário