A Laicidade do Estado e o Estado Democrático


A LAICIDADE DO ESTADO E O ESTADO DEMOCRÁTICO
A falácia de um discurso oco


Um Estado laico e um Estado democrático de direitos. Estas duas expressões são sempre mencionadas no ambiente político e acadêmico em nosso país e no Ocidente. Elas são o que há de mais pleno, ao menos para os ocidentais, em termos de gestão de uma nação e de participação representativa que um povo pode desejar na condução das decisões que afetam diretamente o destino e a vida de todas as pessoas que fazem parte de um país considerado livre.

Viver em um estado laico significa, em linhas gerais, que há pouca ou nenhuma intervenção e influência dos sistemas de crenças religiosas nas decisões dos gestores e administradores públicos no que diz respeito às políticas públicas e na condução das dinâmicas e demandas existentes entre o povo e o sistema de Governo. Viver em um Estado democrático de direitos, igualmente, significa dar acessos aos direitos conquistados e garantir a cada pessoa do país, sem distinção de credo, raça ou gênero, sua participação irrestrita aos mesmos e também ter cada parcela da população sendo representada politicamente nos estames do poder adequadamente.

Porém, são nas definições dos termos que encontramos e reside precisamente o entrave e o impedimento da conquista de uma “realidade” que mais se parece com uma utopia do que com uma possibilidade concreta. Neste caso específico é que encontramos a falácia de um discurso oco, desprovido de essência e conteúdo.

A laicidade do Estado
Este é um tema bem interessante. O Estado moderno é concebido como uma “máquina” e não como a participação de certos indivíduos notáveis em posições ocupadas e oriundas de representação popular, por isso a fácil conexão e identificação dele com um sistema frio e desprovido de vontades particulares. Mas a definição de Estado é bem mais complexa do que a que estamos acostumados a ouvir. Basicamente, o Estado já foi visto de diversas formas teóricas ou práticas, como, o Estado Fiscal, o Estado Social, o Estado do Bem Estar Social, o Estado de Vigilância e Controle, o Estado de Segurança Nacional, o Estado Liberal, e, por fim, as definições mais recentes de Estado Contemporâneo e Estado Moderno.

Todas essas teorias e práticas alteraram drasticamente a concepção de Estado, que deixou de ser algo orgânico e intrínseco da vida da sociedade e passou a ser mais visto como uma estrutura organizacional que molda a própria sociedade e a organiza como um todo, por vezes tornando-se antagônico aos desejos daquela que lhe deu origem, a mesma sociedade. Neste bojo de teorias e práticas, a laicidade é uma exigência do próprio Estado, como sendo um mecanismo que o liberta para a tomada de decisões que beneficiem o todo e o geral e não somente aos desejos particulares ou corporativos.

Laico, de forma bem simples significa “o que ou quem não pertence ao clero ou não fez votos religiosos”, em termos de governo, vai então, significar aquilo que não sofre influência ou controle por parte da igreja ou de nenhuma religião. A laicidade, portanto, tem como fundamental, uma ordem ou estrutura que não toma decisões baseadas em crenças religiosas quaisquer que sejam. Isso parece fácil, mas na prática, a coisa é bem mais complicada.

É assim pelo simples fato que pode haver em teoria e em lei um Estado laico, porém, as pessoas que participam deste Estado e de seus meandros governamentais não são laicas. A maioria das pessoas advoga crenças bem definidas ou mais flexíveis no sentido religioso, mas lhes é impossível desconectar suas crenças de suas vidas, isto porque as crenças formam seu estilo de vida e não o contrário. Por isso, ao se exigir laicidade, aqueles que o fazem, não estão conscientes (ou fingem não estar) do poder dos símbolos e das crenças na vida da maioria maciça da humanidade.

Não é possível haver Estado laico controlado por pessoas apenas laicas. Isso é como a água e o óleo, no melhor das hipóteses estes elementos coexistem no mesmo espaço, mas jamais se misturam. O Estado laico coexiste – em harmonia ou não – com pessoas que têm crenças religiosas, e não se pode esquecer que o governo que o Estado faz, não o faz apenas para pessoas laicas, mas para uma maioria com crenças religiosas definidas. É uma tremenda contradição lógica, querer governar um povo religioso por um sistema laico. Óbvio que a confusão sempre estará presente.

A Democracia
Desde a antiguidade os pensadores como Aristóteles e Platão e até os nossos dias, se debruçam sobre as ideias e as práticas de governo sobre as sociedades humanas. A Democracia já foi tratada em muitos livros, tomos e escritos de maneira extensa e também sobre ela já se foi dito coisas boas e ruins.

A Democracia que experimentamos no Ocidente em larga escala é a representativa, onde alguns eleitos pela maioria exercem cargos e funções de governo sobre todos os outros, mas em tese, devem defender os desejos desta maioria que os escolheu para representá-los. Digo em tese, porque a percepção mais evidente que possuímos neste processo é de que estes representantes de fato não “representam” seus eleitores na outra ponta do sistema, mas sim, certos desejos bem particulares de uma minoria que lhes financiou a própria eleição.

A Democracia é definida mais propriamente como o governo do povo, ou seja, de todos os cidadãos que gozam dos direitos de cidadania. Popularmente conhecido como o “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Aqui reside outra tremenda contradição lógica. Se a concepção de Democracia essencialmente leva em questão o desejo de todos, que serão ao menos considerados, e a representação eleita e contratada – os políticos e os funcionários públicos – são a maneira de manifestar esse desejo coletivo, então, não vivemos nem perto de uma Democracia em nenhum lugar do mundo, porque é impossível se criar um ambiente verdadeiramente democrático.

Se as representações não conseguem realizar o desejo do coletivo e todos os que fazem parte deste coletivo não têm seus anseios correspondidos, não existe Democracia, mas sim, um arremedo ou uma tentativa já fracassada de se ter um sistema que beneficie a todos de fato. A política dos “representantes populares” acaba por se tornar apenas uma gestão do contraditório, onde a luta ideológica é a ferramenta principal, e o governo para o povo, o povo todo, algo do imaginário na prática.

A grande contradição
Agora imagine uma ideia como a que estamos acostumados a ouvir quase todos os dias nos discursos dos representantes: Estado laico e ao mesmo tempo democrático. Como algo assim é possível? Um Estado formado e governado pela maioria de pessoas que possuem crenças e delas não se separam (porque não podem, pois isto é endêmico e latente) e um Estado democrático, onde todas as pessoas e seus anseios são satisfatoriamente ou minimamente supridos é incoerente e paradoxal, por isso, a Democracia ideal é tida como utópica.

Como poderíamos exigir um Estado laico para governar um povo de crenças? Como podemos falar e desejar a Democracia onde todos os setores da sociedade não possuem representantes no jogo do poder? Como se deseja eliminar a representação religiosa, se sem essa representação não se pode dizer que há governo democrático? Como eliminar a laicidade ou estabelecê-la em última instância, se para isso é necessário se fazer calar uma parcela gigantesca da população? Portanto, é impossível trazer uma solução concreta, coerente e satisfatória para essa problemática, haja vista que a dialética entre os sistemas – laicidade e Democracia – não encontraram um denominador comum.

Por isto é falacioso, irresponsável, incongruente, hipócrita e tendencioso este discurso sobre a laicidade do \Estado em uma Democracia, pelo fato que este não se sustenta ao passar pelo crivo do pensamento rigoroso e pela observação correta do ambiente, não apenas político e legal, mas também do ambiente religioso no qual está inserida a população do país.

Só é preciso uma pequena observação nas declarações de crenças religiosas que foram levantadas pelo último Censo do IBGE em 2010, que mostra que apenas 8% da população pesquisada – num total de mais de 190 milhões naquele ano – se declarou sem religião, isto significa que o número de pessoas religiosas no Brasil é de 92% da população. Como não levar em consideração algo desta magnitude quando se fala de laicidade do Estado? E mais, como governar um Estado na laicidade para um povo majoritariamente religioso? As respostas são muito mais complicadas do que o discurso!


© Carlos Carvalho
Teólogo e Cientista Social
17 de fevereiro de 2016

Referências

BOBBIO, Norberto, Dicionário de política / Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1a ed., 1998.

Censo Demográfico 2010: Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. Acessado em 17/02/2016.


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