A Busca da Justiça e o Ódio Nosso de Cada Dia


A Busca da Justiça e o Ódio Nosso de Cada Dia


Peço aos cristãos mais conservadores perdão por utilizar a expressão “o ódio nosso de cada dia” neste texto como substituto da expressão dita por Jesus na oração do Pai Nosso, “o pão nosso de cada dia”. Não desejo ser ofensivo nem tampouco desrespeitar o texto sagrado com elas.

Tenho pensado nestes dias sobre o ódio e em como ele tem sido utilizado das maneiras mais diversas em nosso mundo em qualquer que seja o lugar onde o ser humano de encontre, seja no mundo secularizado ou no mundo religioso. Muitos têm escrito e falado sobre o ódio e sobre a justiça em muitos espaços, antes e hoje.

Continuo não apenas refletido sobre isso, mas também tenho reformulado e revisto a minha maneira de trabalhar o assunto. Reconsiderar certos passos ou refazer seus conceitos de maneira mais clara e objetiva possível, demonstrando mais profundidade e verdade sobre o que se pensa e escreve é esperado de qualquer pensador.

Como seres habitantes de nosso tempo enfrentamos grandes discussões e dilemas que alteraram nossa agenda global e modificaram para sempre o modelo de relacionamento entre nós. As grandes guerras, as guerras civis, o fundamentalismo religioso violento dentro do Islamismo, os genocídios e limpeza étnica vistos em partes do mundo, o aparente retorno de uma forma de Guerra Fria entre as potências globais (que já não são tão potentes assim, mas têm ainda força bélica destrutiva) e o recrudescimento da violência em todos os níveis imagináveis das relações humanas, servem para nos mostrar o tamanho do problema.

Como se tudo isso não bastasse, em nosso país, estamos às voltas com diversos discursos de ódio e fomento a este, disfarçados de busca de direitos, luta contra a intolerância, defesa de anseios sociais, luta por um Estado laico ou em busca das liberdades asseguradas na nossa Constituição.

A questão nos dois pólos entre a maioridade ou menoridade penal também vem no reboque discursório do dia a dia. Na tentativa de acabar com a “impunidade” de quem quer que seja (a bola da vez são os adolescentes), estamos tentando criar linhas de defesa bem definidas e inflexíveis para conter o problema da violência, que não só é concreto hoje, mas também crescente, porém não estamos, igualmente, levando em conta as consequências a longo prazo dessas possíveis ações, e o pior, não temos medimos o quanto de ódio está inserido em nossas motivações.

Porque digo isto? É bem possível que no bojo de nossa luta contra a violência crescente – coisa louvável – somos levados a ela pela simples causa que desejamos viver tranquilos, sem que ninguém nos perturbe, sem sermos abordados por pessoas que estejam de fato necessitadas do básico para sobreviver, porque não queremos viajar de avião ao lado de “pobres” ou morar ao lado da “nova classe média” sem cultura e sem conhecimento, porque não desejamos que a favela e a periferia invadam nossos espaços de lazer e nosso habitat, porque não queremos ver seus filhos brincarem com os nossos ou não desejamos que pessoas de outras matrizes religiosas tenham seus espaços legitimados. Tudo isso se fundamenta no ódio que sentimos pelo outro e pelo que ele ou ela representa, mesmo que em pequenos níveis.

Os movimentos de luta pelo lugar do negro, pelo direito dos gays, pela preservação de animais, pelo meio ambiente, pela economia sustentável, pela família alternativa, pela religião alternativa ou pelo retorno do paganismo, pelo ateísmo, pelo lugar especial da ciência, por um governo mais social, pelos pobres, pelos que vivem abaixo da linha da pobreza, pelas crianças e adolescentes, pelo lugar da mulher ou qualquer outro movimento, embora possam ser legítimos para muitos, podem estar “subcutaneamente” carregados de ódio pelo outro que não está nas mesmas condições ou que não defende as mesmas causas.

Da mesma forma, os movimentos de defesa do Cristianismo, da posição judaico-cristã da moral e da ética, de uma sociedade pautada pelos princípios cristãos, de um país mais temente a Deus e praticante de sua Palavra, da preservação de objetos ou figuras sagradas em locais públicos, de defesa dos direitos de todas as religiões e igualdade religiosa, da família tradicional, da heteronormatividade nas relações sexuais e familiares, do lugar de destaque da religião da maioria, da honestidade e da ética nos negócios, da pluralidade de pensamento e do livre exercício da expressão ou da própria Democracia e até mesmo o desejo por justiça que tanto ouvimos diariamente, também podem estar contaminados por níveis não facilmente perceptíveis de ódio, mesmo que estas defesas sejam positivas e benéficas para outros tantos.

Por isso diante de nós está lançado um tremendo desafio: o de moderar ou mitigar os efeitos do ódio, ao menos em índices não letais para as relações humanas, com o fim de nos posicionar em campos mais neutros nos discursos. Não neutros de conteúdo e de convicções, pois espera-se de defensores que tenham brio e integridade para pensar e expor suas teses com habilidade e gravidade, mantendo o ambiente de respeito ao outro, mesmo que não lhes seja possível compartilhar dos conceitos e da cosmovisão de seus “oponentes”. Aqui jaz o real problema em nossos dias (nestas áreas descritas ao menos): a intolerância em qualquer direção, no fundo, está motivada por um tipo de ódio, mesmo que seja mínimo.

Não existirá uma sociedade humana na qual o ódio não apareça ou não exista. Jamais, falando como humanos comuns, deixaremos de sentir ódio em algum nível, e certo tipo de ódio é saudável, como por exemplo, o ódio ao mal, ódio ao crime, à corrupção ou coisas semelhantes. O ódio ainda estará presente nas sociedades e nas relações humanas enquanto a humanidade como a conhecemos perdurar. Porém, sabedores disto, possuímos o dever moral não somente de lutar contra as manifestações visíveis de ódio, como também de controlar e suprimir as extrapolações desse ódio que desejem fluir de nós por quaisquer motivos listados acima. Aqui deixo o conselho de Tiago, irmão do Senhor acerca do tema:


“A ira do homem não produz a justiça de Deus”
Tiago 1.20

Se a ira de um ser humano por motivo justo que seja não trará a justiça divina em nosso planeta, pois esta opera em outros patamares, o que esta ira produzirá quando for direcionada a outro ser humano? A resposta tem sido óbvia todos os dias. E sequer tocamos na questão da busca pela justiça!



Carlos de Carvalho
Teólogo e Cientista Social formado pela Universidade Metodista de São Paulo
Pr. Sênior da Comunidade Batista Bíblica
Fundador da ONG ABAN Brasil

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